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Sem educação não há igualdade

A edição 33 da Revista Conteúdo trouxe como um dos temas a luta por uma escola livre de preconceito e discriminação. Em sua matéria de capa, a publicação da Contee fez importante questionamento: “A quem interessa a desigualdade de gênero?”. A reportagem também discutiu as consequências da desigualdade de gênero e o papel da educação na luta pelo fim da desigualdade e preconceitos. Confira abaixo a matéria na íntegra e clique aqui para acessar a Revista.
A quem interessa a desigualdade de gênero?

A frase da escritora e filósofa feminista Simone de Beauvoir, que apareceu numa questão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), deste ano, além do tema da redação “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, podem ser vistas como uma resposta à cruzada desencadeada por grupos religiosos contra a formulação de políticas públicas para a promoção da igualdade de gênero, por meio da educação, nos planos nacional, estaduais e municipais de educação.


Os planos determinam diretrizes, metas e estratégias para a política educacional durante dez anos e têm força de lei.

Em abril de 2014, o PNE foi aprovado sem um trecho do texto que apontava que entre as diretrizes do ensino deve estar a superação das desigualdades educacionais “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. No entanto, setores na política que representam interesses de igrejas alegaram que o texto estimularia a homossexualidade com a distribuição de material escolar, afirmando existir uma ‘ideologia de gênero’.

“Estamos saudando a inteligência da elaboração da prova do Enem. Consideramos uma atitude lúcida e correspondente aos princípios que devem orientar a educação deste País.Vejo também como uma reação à revogação de portarias no MEC (Ministério da Educação)”, afirma Lucia Rincon, presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM). Uma dessas portarias transformou o nome do Comitê de Gênero, do MEC, em Comitê de Combate à Discriminação, dias depoisde ter sido criado, em 10 de setembro último.

Todas as organizações de mulheres e LGBTs ouvidas pela REVISTA CONTEÚDO apontam o fato como um grave retrocesso na construção de uma sociedade mais justa e igualitária e da manutenção da laicidade do Estado, definidoconstitucionalmente, uma vez que há incidência de uma moral religiosa dentro de um espaço de formação dos indivíduos que deveria ser democrático e não permeado por valores religiosos. Ao contrário do que apontaram deputados pastores, representantes de setores mais conservadores, o objetivo é combater a homofobia e a discriminação contra as mulheres.

A investida de católicos e evangélicos para impedir que a palavra gênero seja incluída nos planos de educação, ao longo de 2015, gerou um embate com organizações e movimentos de mulheres que defendem políticas de gênero para combater as desigualdades sociais e a violência contra a mulher. Não há um balanço dos planos em todas as localidades, em relação à disputa, mas segundo o mapa sobre a situação dos planos, do Portal do MEC, em 17 estados mais o Distrito Federal haviam planos aprovados e sancionados, até o fechamento desta matéria. Muitos deles sem a questão de gênero como política estabelecida, como Paraná, Rio Grande do Sul e Paraíba.

Nacional

No cenário nacional, movimentos sociais de mulheres e LGBTs lembram que o lobby da bancada religiosa foi mais forte, representada pelos deputados Marco Feliciano (PSC-SP), Marcos Rogério (PDT-RO) e Pastor Eurico (PSB-PE).

A presidenta da UBM acompanhou de perto a mobilização e recorda que o tema vem sendo debatido desde 2013, nos encontros estaduais e municipais preparatórios para a Conferência Nacional de Educação (Conae). “Quando o assunto chegou ao Congresso Nacional, nós (do movimento social) já havíamos debatido e construído uma proposta para política de gênero no processo das conferências, discutindo dentro das escolas, com a comunidade”, disse Rincon. Em seu documento final, a Conae, que acabou acontecendo depois da votação do PNE, prevê a superação das desigualdades “de gênero e relativas à diversidade sexual ainda presentes na sociedade e na escola”. Além disso, aponta no Eixo II a promoção de uma política para banir “o sexismo, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia nas instituições educativas de todos os níveis, etapas e modalidades”.

Sonia Coelho, da coordenação nacional da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), reconhece que a orquestração dos setores conservadores pegou o movimento feminista de surpresa em algumas localidades: “Não tínhamos a dimensão do problema e que isso poderia acontecer. A gente não compreendeu toda a problemática resultante da derrota nacional, no PNE, que fortaleceu esses setores, e que isso viria em efeito dominó nos municípios”.

Em sua análise, também há uma dinâmica de articulação dos religiosos em suas bases comunitárias, nos municípios, para influenciar no nível nacional. Isso ocorreu, por exemplo, na tramitação do PLC 3/2013 que tratava da obrigatoriedade de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) prestar atendimento emergencial às vítimas de violência sexual, incluindo a profilaxia da gravidez com pílula do dia seguinte. Como foi aprovado e sancionado pela presidenta Dilma Rousseff, vereadores ligados a esses setores começaram a propor projetos similares ao PL 5069/13, do deputado Eduardo Cunha, que proíbe a profilaxia.

A “derrota” do embate nacional no PNE, descrita por Coelho, é resultante de uma conjuntura após as eleições de 2014, com aumento das bancadas conservadoras no Congresso – religiosos, ruralistas, militares ou pessoas ligadas à polícia – e redução da frente sindical de 83 parlamentares para 50 deputados e nove senadores. Logo após o resultado do último pleito, um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) apontou que é o Congresso mais conservador desde a redemocratização do país, após a ditadura militar. Só a bancada evangélica reúne 78 parlamentares – entre bispos, pastores e parlamentares alinhados -, sendo um deles presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que é ligado à Assembleia de Deus. De acordo com o Diap, pelo menos 40 são bispos e pastores que exercem influência em igrejas.

Do total eleito no Congresso, somente 9,94% são mulheres, sendo 51 deputadas e 13 senadoras. Uma recente reação no Senado foi a criação da sua Procuradoria da Mulher, em 2013, com campanhas para promover igualdade de gênero no parlamento como a Campanha Mais Mulheres na Política, que estimula uma reforma política para maior participação de mulheres nos espaços de poder.

Conservadorismo

A representante da Marcha Mundial de Mulheres frisa que as organizações feministas vêm alertando sobre o fortalecimento do conservadorismo na sociedade e nos parlamentos desde o início dos anos 2000. “Temos chamado a atenção sobre conservadorismo no Brasil desde a virada do milênio. Mas só recentemente é que vemos os movimentos sociais mistos falando dessa questão, percebendo como um problema de todos”, lamenta Coelho, ressaltando a importância de estabelecer uma pauta unitária sob esse ponto de vista. “Não é o movimento feminista que perde, é toda a sociedade”, completa.

A educadora popular Rogéria Peixinho, uma das coordenadoras nacionais da Articulação de Mulheres Brasileira (AMB), também concorda que o conservadorismo está instaurado na sociedade e que somente com educação haverá mudanças. “Sinto como se estivéssemos vivendo no tempo das trevas ao ler projetos de lei que proíbem vítimas de estupro de receberem atendimento integral de saúde e professores de emitir opinião em sala de aula. Há uma parcela da população que apoia linchamentos públicos de homossexuais, redução da maioridade penal. É algo que faz a gente refletir onde é que está travando (o desenvolvimento), o que nos leva a uma única resposta: a educação“, pondera Peixinho.

A coordenadora da AMB lembra que esse avanço do pensamento conservador também ocorre no mundo. Para freá-lo, defende também a educação popular para alterar os padrões de comportamento. “Não adianta só educação tradicional, formal. Precisamos de novas estratégias educacionais em todos os sentidos, inclusive na questão de gênero”, diz Peixinho.

A organização Católicas Pelo Direito de Decidir também vem acompanhando com preocupação o avanço dos PLs conservadores. “A questão de gênero já está colocada na escola, seja com crianças que recebem influência da cultura machista, seja com jovens que estão descobrindo a sexualidade. É preciso profissionais preparados, com mais clareza sobre os fatos ou a escola será um espaço que vai continuar reproduzindo relações sociais desiguais”, defende Gisele Pereira, da equipe de coordenação da entidade.

Garantia constitucional do princípio da igualdade

Na redação final do PNE, foi mantido o texto do Senado que determina a “promoção da cidadania e a erradicação de todas as formas de discriminação”. Somado a isso, algumas leis, como a Constituição Federal que garante igualdade para todos, e tratados internacionais, os quais o Brasil é signatário, garantem a adoção de medidas que contemplam a diversidade sexual e o combate ao preconceito.

A advogada Ana Lúcia Keunecke, da Artemis, avalia que a partir dos documentos já existentes o Brasil pode ser denunciado em instâncias como a Organização dos Estados Americanos (OEA) por descumprimento desses acordos mundiais. Ela enfatiza a forma equivocada como as políticas de gênero estão sendo apresentadas pelos recém-eleitos representantes do povo, como sendo algo novo. “Não é uma inovação. Já houve debates em diversas instâncias políticas, acordos e tratados internacionais foram firmados, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Cedaw, aprovada na ONU (Organização das Nações Unidas), em 1979, assinada pelo Brasil em 1981, ratificada com ressalva em 1984, e ratificada sem ressalva em 2002”, recorda a especialista em direito da mulher.

A Cedaw é o primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos das mulheres, e estimula os países membros, como o Brasil, a buscarem igualdade de gênero e reprimir qualquer discriminação contra as mulheres. “Esse tratado tem força de emenda constitucional. Se for contrário a ele pode ser denunciado em cortes internacionais por violação aos direitos humanos”, exclama Keunecke.
No entanto, algumas organizações defendem que para ser cobrado enquanto política de educação, com
previsão de verba orçamentária, é fundamental que esteja incluído como meta dos planos educacionais para a eliminação da violência decorrente das relações de gênero. “Apesar de estar garantido em outros dispositivos legais, entendemos que é fundamentalestar no PNE”, diz a representante das Católicas.

Movimento LGBT

Mas, afinal, o que é essa ideologia de gênero a qual os religiosos acusam as feministas? Para a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que chegou a divulgar três notas públicas, trata-se de uma teoria marxista, “difundida pela escola de Frankfurt, pelo construtivismo e pelo existencialismo de Simone de Beauvoir”, que impede que crianças escolham serem meninos ou meninas, obrigando-as a adotarem um comportamento neutro. Grupos organizados na internet divulgam amplo material, alguns tratando autores que não são contemporâneos de Karl Marx como se fossem e afirmando que a ideologia de gênero contradiz estudos biológicos, confundindo conceitos de anatomia e genética com identidade cultural.

O ativista LGBT e de direitos humanos de São Paulo, Bruno Maia, do coletivo Pedra no Sapato, também conhecidocomo Todd Tomorrow, alerta para a divulgação de materiais falsos sobre orientação sexual para criar clima de alarmismo em relação ao PNE, como uma cartilha atribuída ao governo municipal de Maceió, com supostas orientações sexuais.

Ele acompanhou a mobilização durante a votação do Plano Municipal de Educação e conta que desde o início havia um acordo entre evangélicos e católicos. “A ala da extrema direita da Igreja Católica, que inclui TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), ficou encarregadade usar a capilaridade da igreja para influenciar nos planos municipais e estaduais de educação. Já os evangélicos ultraconservadores iam tomar as rédeas do estatuto da família (aprovado recentemente na Câmara dos Deputados)”, conta ele, que vê com preocupação surgimento de páginas na internet, especialmente no Facebook, que “demonizam especialmente os LGBTs”.

De acordo com o ativista, a igreja católica, que é mantenedora de diversas instituições de ensino, não tem interesse em fomentar o debate sobre a questão da violência contra a mulher e a evasão escolar de LGBTs, que é muito alta, especialmente de travestis e transexuais, que são alvo de bullying, impedidos de usar nome social e o banheiro com que mais se identificam.

“Trata-se de uma questão moral sobre a compreensão que se tem sobre sexualidade. Há muita confusão e falácia. Esse termo ideologia de gênero é um dos mais absurdos que já se cunharam”, afirma Gisele Pereira.

Estratégias

Para Rogéria Peixinho, da AMB, a igreja evangélica vem ocupando os espaços vazios, cumprindo um papel que antes era do setor mais progressista da igreja católica, juntamente com o movimento organizado, que fazia um trabalho contínuo de formação. “Ainda são feitas ações nas comunidades, mas ficou muito solto, sem continuidade. Temos que retomar com força o trabalho de base, de formiguinha, ir às escolas, às associações de bairros e moradores que, vamos combinar, não está sendo feito”, pondera Peixinho.

A representante da Marcha Mundial de Mulheres diz que é preciso se adaptar as mudanças. “O trabalho de base precisa estar adaptado a uma nova realidade, com as novas formas de disseminar informação, como a internet, e a atuação da juventude, que precisa ser compreendida”, analisa Sonia Coelho, que trabalha com mulheres em periferias desde os anos 1980 e observa que fazer a informação chegar às populações periféricas tem sido um dos desafios do movimento social nos últimos anos.

Outro ponto fundamental colocado pelas militantes é o empoderamento desses setores sociais nas instâncias de decisão. “Essa interlocução entre o que acontece na sociedade e o que é feito pelos governos precisa passar permanentemente por uma relação dialética de incorporação da voz dessas organizações, daí a importância em fortalecer os conselhos, por exemplo”, afirma Lucia Rincon, da UBM, que tem como diretriz para 2016 fomentar a inserção da mulher na política nas eleições municipais.

Na prática

Desde 2014, agressores que respondem a inquérito ou processo por violência contra a mulher, com exceção de crimes sexuais e feminicídio, estão sendo encaminhados para um curso sobre violência doméstica no município de Taboão da Serra, em São Paulo. Trata-se do projeto Tempo de Despertar, promovido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em arceria com município, OAB-SP e organizações sociais.

São oito aulas, com duração de três horas, cada, que ocorrem quinzenalmente, ministradas por especialistas que abordam temas como história sobre conquistas e direitos das mulheres; Lei Maria da Penha; noções de cidadania; álcool, droga, controle da ansiedade e impulsividade; entre outros. Também são formadas rodas de conversa que discutem machismo, papel do homem e da mulher, com acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos.

A promotora de Justiça, Maria Gabriela Prado Manssur, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, da Grande São Paulo 2, idealizadora do projeto, conta que teve a ideia quando percebeu que mesmo com a adoção de uma legislação mais rigorosa, como a Lei Maria da Penha, os casos não diminuem. Um levantamento feito entre 2006 e 2013, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apurou que a legislação foi responsável pela redução de 10% dos homicídios contra mulheres dentro das residências brasileiras.

Com base na mesma lei, passou a indicar o curso como parte da pena aos juízes, que passaram a intimar os homens a comparecerem na atividade, como uma medida protetiva para a mulher. Se deixar de ir, sofre penalidade legal. Se comparecer, tem redução de pena.

Ela conta que 75%, em média, dos inscritos no curso concluem a atividade e todos os que concluíram não reincidiram. Na segunda turma, encerrada no final de outubro deste ano, 26 dos 30 homens intimados compareceram.

“Para transformar o comportamento é preciso formar para uma nova cultura. A ausência de uma abordagem da questão de gênero nas escolas perpetua a visão de que a mulher é um objeto, tem papel secundário. E isso se reflete no trabalho, nas relações afetivas”, diz a promotora de Taboão da Serra.

Os cursos de cidadania para homens violentos também atendem a um desejo de suas vítimas, que não querem punição com prisão. Levantamento feito em Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher e em Defensorias Púbicas, em 11 cidades, de seis Estados brasileiros, pelo Ministério da Justiça, revela que 80% das mulheres agredidas não querem que o autor da violência seja punido com prisão. Entre as alternativas apontadas pelas vítimas, 40% disseram que eles devem fazer tratamento psicológico, 30% acham que deveriam frequentar grupos de agressores, e 10% preferem prestação de serviços à comunidade.

“Elas relatam que não querem puni-los e esperam que eles percebam que estão errados. E por mais que consigamos romper com um ciclo de violência, esse agressor vai acabar constituindo novas relações agressivas. Para romper é preciso descontruir o machismo que há nesse homem. E isso só será possível com educação”, diz a defensora pública Ana Paula Meireles, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), na capital paulista, da Defensoria Pública, que registra 30 novos casos de violência doméstica ao dia, em média.

Em 2014, o Ipea divulgou estudo, feito a partir da base de dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação, do Ministério da Saúde (Sinan), de 2011, notificados por profissionais de saúde de estados e municípios, que estima que no mínimo 527 mil pessoas sejam estupradas por ano no Brasil e que apenas 10% desses casos chegam ao conhecimento da polícia. Do total, 88,5% das vítimas são do sexo feminino, 70% são crianças e adolescentes, 46% não possuem o ensino fundamental completo, 51% eram de cor preta ou parda.

fonte: contee.org

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