Demerval Saviani Publicado em 22.08.2016
Enquanto
a pedagogia tradicional considera os educandos como indivíduos
abstratos e a pedagogia moderna os considera como indivíduos empíricos, a
pedagogia concreta é aquela que considera os educandos como indivíduos
concretos, isto é, como sínteses de relações sociais.
A
relação entre marxismo e educação pode ser considerada de múltiplas, e
variadas, formas. Um exemplo dessa variedade é o livro, recentemente
publicado, Marxismo e educação: debates contemporâneos (LOMBARDI e
SAVIANI, 2005). Nele, além da Apresentação de José Claudinei Lombardi –
que discute amplamente a atualidade do marxismo –, encontram-se textos
de diferentes autores, abordando além da visão de Marx e Engels as
contribuições de Lênin, Gramsci, Althusser, bem como os temas da
construção dos sistemas educacionais, da dialética e pesquisa em
educação, da qualificação dos trabalhadores, da crítica ao
construtivismo, concepção socialista de educação, politecnia e pedagogia
histórico-crítica.
Portanto,
o leitor interessado em adquirir uma compreensão mais aprofundada das
relações entre marxismo e educação poderá, com proveito, lançar mão
dessa obra. No presente texto, tomo um aspecto específico que, a meu
ver, constitui o cerne da concepção filosófica de Marx. Trata-se da
categoria de “concreto”. Para tanto, abordarei o significado dessa
categoria tal como a expõe Marx no “método da economia política”.
Discutirei a concepção marxista no quadro da filosofia moderna e
contemporânea. E, finalmente, examinarei sinteticamente as implicações
dessa concepção para a pedagogia.
O significado do conhecimento em Marx
De
acordo com Marx, o movimento global do conhecimento compreende dois
momentos. Parte-se do empírico, isto é, do objeto tal como se apresenta,
à observação imediata. Nesse momento inicial, o objeto é captado numa
visão sincrética, caótica, ou seja, não se tem clareza do modo como ele
está constituído. Aparece, pois, sob a forma de um todo confuso, como um
problema que precisa ser resolvido. Partindo dessa representação
primeira do objeto chega-se, por meio da análise, aos conceitos, às
abstrações, às determinações mais simples. Uma vez atingido esse ponto,
faz-se necessário percorrer o caminho inverso (segundo momento),
chegando pela via da síntese de novo ao objeto agora entendido não mais
como “a representação caótica de um todo”, mas como “uma rica totalidade
de determinações e de relações numerosas” (MARX, 1973, p. 229).
Assim
compreendido, o processo de conhecimento é, ao mesmo tempo, indutivo e
dedutivo, analítico-sintético, abstrato-concreto, lógico-histórico.
Nas palavras do próprio Marx, “o primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” (Idem, Ibidem).
Nas palavras do próprio Marx, “o primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” (Idem, Ibidem).
O
empirismo – e, portanto, o positivismo – se limita ao primeiro passo.
Para essa tendência gnosiológica, conhecer, fazer ciência, é reduzir o
complexo ao simples; é passar do particular ao geral; é chegar a
conceitos gerais, por isso mesmo, simples e abstratos, dotados –
exatamente por causa de seu caráter abstrato – de validade universal.
Inversamente,
o racionalismo idealista limita-se ao segundo passo. Para essa
tendência é o pensamento que constitui o homem real; o que significa que
também o mundo só é admitido como real, enquanto concebido. “Por isso
Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento,
que se concentra em si, se aprofunda e se movimenta por si próprio,
enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é
para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de
o reproduzir como concreto pensado” (Idem, Ibidem).
De
fato, “a totalidade concreta enquanto totalidade pensada, enquanto
representação mental do concreto”, é produto do pensamento; resulta da
atividade de conceber. Mas não é “produto do conceito que desse origem a
si próprio, que refletisse exterior e superiormente à observação
imediata e à representação” (Idem, p.230). Ao contrário, ela é “produto
da elaboração de conceitos a partir da observação imediata e da
representação” (Idem, Ibidem).
Deve-se
distinguir, portanto, o concreto real do concreto pensado. “O todo, na
forma em que aparece no espírito como totalidade pensada, é um produto
do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é
possível” (Idem, Ibidem), isto é, conceitualmente. Já o concreto real,
antes do processo de conhecimento, assim como depois, “conserva sua
independência fora do espírito” (Idem, Ibidem).
Vê-se,
pois, que estamos diante de uma concepção claramente realista, em
termos ontológicos, e objetivista, em termos gnosiológicos. Assenta-se,
portanto, em duas premissas fundamentais: 1. As coisas existem
independentemente do pensamento, com o corolário: é a realidade que
determina as idéias e não o contrário; 2. A realidade é cognoscível, com
o corolário: o ato de conhecer é criativo não enquanto produção do
próprio objeto de conhecimento, mas enquanto produção das categorias que
permitam a reprodução, em pensamento, do objeto que se busca conhecer.
Uma concepção ultrapassada?
Indicada
a concepção marxista do conhecimento, é inevitável enfrentar objeções
do tipo: mas essa não é uma concepção ultrapassada, ligada à visão
moderna, com sua “metafísica do sujeito”? Não é Marx um autor do século
XIX, marcado pelo paradigma do racionalismo iluminista, amplamente
contestado em nossa época, delimitada pelo linguistic turn?
De
fato, está amplamente difundido, nos dias de hoje, o enquadramento de
Marx como um autor enclausurado aos limites da modernidade,
equiparando-se a Comte, Spencer, Darwin e a outros representantes do
século XIX, cujo pensamento girava ainda no âmbito das aporias
enunciadas por Kant.
Mas é exatamente essa espécie de lugar-comum de nossa época que precisa ser discutida.
A meu ver, esse enquadramento de Marx aos limites da modernidade é um equívoco gnosiológico, isto é, científico e filosófico, embora não se possa negar que seja um acerto ideológico. Esclareçamos esse enunciado, sem dúvida, polêmico.
A meu ver, esse enquadramento de Marx aos limites da modernidade é um equívoco gnosiológico, isto é, científico e filosófico, embora não se possa negar que seja um acerto ideológico. Esclareçamos esse enunciado, sem dúvida, polêmico.
É
mais ou menos consensual o entendimento de que a filosofia moderna foi
inaugurada com Descartes. A dúvida metódica – por ele lançada em seu
Discurso do Método e radicalizada nas Meditações –, coloca em questão
todos os conhecimentos anteriores para instaurar, sobre a experiência
subjetiva da dúvida, a verdade inabalável do “cogito”: se tudo eu posso
pôr em dúvida, há algo do qual não posso duvidar, a saber, que eu
duvido. Ora, se eu duvido, eu penso; e se eu penso, eu sou; eu existo
(“cogito, ergo sum”). E Descartes irá descrever o eu pensante como “res
cogitans”, uma coisa que pensa, por oposição à “res extensa”. O sujeito
é, portanto, uma substância que se define pelo pensamento; uma
substância espiritual, indivisível, unitária (indivíduo), por oposição à
substância material que pode ser dividida ao infinito. Dir-se-ia que se
instituiu, a partir daí, a “metafísica do sujeito”, entendida por
muitos como sendo a característica definidora do pensamento moderno.
Efetivamente,
dessas duas noções cartesianas derivaram as duas correntes básicas da
filosofia moderna: o racionalismo e o empirismo, ambas ancoradas no
sujeito, transformado na nova sede do critério de verdade. A crítica
cartesiana desautorizou o objetivismo e o realismo ingênuos que
dominaram o pensamento antigo e medieval. Até aí vigorava o critério da
evidência objetiva, tão bem traduzido no significado da palavra grega
denotativa da verdade: a???e?a (aléteia), que significa “coisas não
cobertas”, isto é, evidentes, às quais o pensamento deve se submeter. É
esse o caráter da definição clássica de verdade como a adequação do
intelecto à coisa, ligada à consideração de que o critério último e
universal de julgamento da verdade é a evidência objetiva. A partir de
Descartes o critério de verdade desloca-se para o sujeito: nada terá
estatuto de verdade sem passar pelo crivo da experiência subjetiva. O
crivo da razão, expresso na arte de raciocinar fundada no exercício da
dúvida, dá origem à tradição racionalista: só poderá ser aceito como
verdadeiro aquilo que eu puder reduzir a idéias claras e distintas. Ou o
crivo da sensação, expresso na arte de observar fundada no exercício
dos sentidos, que origina a tradição empirista: aqui só será considerado
verdadeiro aquilo que eu puder perceber por meio de meus sentidos.
No
entanto, a história da filosofia moderna pode ser lida, também, como a
história da erosão da noção de substância. Assim, se em Descartes o
sujeito cognoscente é uma substância que pensa (“res cogitans”) e o
mundo é um complexo de substâncias materiais (“res extensae”), o
exercício crítico empreendido pelos seus sucessores vai progressivamente
bombardeando a noção de substância até bani-la completamente do campo
filosófico. Com efeito, o empirista Berkeley fará desaparecer
completamente as substâncias materiais, admitindo apenas a existência de
substâncias espirituais, como fica evidente na fórmula “esse est
percipi”, por ele enunciada. Ser é ser percebido. Isto significa que
algo só pode existir se e enquanto for percebido por algum espírito.
Portanto, a garantia da existência contínua das coisas que compõem o
mundo é dada pela existência de um espírito absoluto e eterno que
continuamente está percebendo tudo. Igualmente em Leibniz, o elemento
simples que está na base da constituição de todo o universo é a mônada,
uma substância espiritual, portanto indivisível e desprovida de
extensão. Todo esse movimento desemboca em Kant que, formado na tradição
racionalista, ao se deparar com a visão empirista expressa nas análises
de Hume, se coloca o problema crítico: como é possível o conhecimento
humano?
Sua
resposta sintetiza os resultados das correntes racionalista e
empirista. O sujeito cognoscente está constituído por formas “a priori”,
a partir das quais ele constrói o objeto do conhecimento organizando os
dados da experiência por meio das categorias do entendimento. Mas esse
sujeito cognoscente não coincide com o sujeito empírico, com aquilo que,
ao nível do senso comum, nós entendemos como sendo aquele que conhece.
Trata-se do sujeito transcendental, entendido como uma pura função de
conhecimento. Não é, pois, uma substância. A filosofia moderna chega,
com Kant, ao seu coroamento, momento em que a noção de substância se
desintegrou totalmente. Estamos, aqui, no campo do idealismo
transcendental. Segundo Kant, o que nós chamamos de objetivo é apenas
uma maneira de nomear aquilo que é universalmente subjetivo. Hegel, com
seu idealismo absoluto, leva às últimas conseqüências a concepção
kantiana o que significa que já se coloca na linha de superação da
filosofia moderna, lançando as bases da filosofia contemporânea.
Em
Hegel também a idéia de substância desapareceu inteiramente, não se
podendo falar em sujeitos do conhecimento ou sujeitos da História. A
História não é outra coisa senão a manifestação do espírito absoluto no
tempo. Portanto, se a história tem um sujeito, este é o espírito
absoluto, do qual os personagens, os líderes, não são mais do que
instrumentos. Por isso os chamados grandes líderes da história, cumprido
o desígnio do espírito absoluto, “caem como cascas vazias de amêndoa”
(HEGEL, 1970, p.58). Ou, numa outra tradução da frase hegeliana impressa
na obra Filosofia da história: “caem como cápsulas vazias de um fuzil”.
O
que tem a ver Marx com essa concepção que caracterizou a filosofia
moderna? Conforme Balibar (1995, p.82-83), “do ponto de vista do
idealismo clássico, poderia parecer que Marx tenha procedido
simplesmente a uma reunião (que poderia ser uma confusão) dos três
pontos de vista” que, acrescento eu, compõem o núcleo da filosofia de
Kant e que são, respectivamente, “a ciência (inteligibilidade dos
fenômenos), a metafísica (ilusões necessárias do pensamento puro) e a
moral ou ‘razão prática’ (imperativo da conduta)”.
Mas,
prossegue Balibar, essa comparação põe em evidência a originalidade da
“teoria da constituição do mundo” elaborada por Marx, “em relação às que
a precederam na história da filosofia (e que, é claro, Marx conhecia
intimamente)”. Eis, em síntese, o cerne da originalidade dessa teoria da
constituição do mundo:
É
que ela não procede da atividade de nenhum sujeito, de qualquer forma
de nenhum sujeito que seja pensável a partir do modelo de uma
consciência. Em contrapartida, ela constitui sujeitos ou formas de
subjetividade e de consciência, no próprio campo da objetividade. De sua
posição “transcendente” ou “transcendental”, a subjetividade passou
para uma posição de efeito, de resultado do processo social (IDEM, p.
83).
Entendendo
o homem como o conjunto das relações sociais, o único sujeito
contemplado na teoria de Marx é o sujeito prático que é, “na verdade, um
não-sujeito, isto é, a sociedade, como o conjunto das atividades de
produção, de troca, de consumo”. Portanto, nessa teoria “a constituição
da objetividade não depende do dado prévio de um sujeito, de uma
consciência ou de uma razão”. Ao contrário, é ela que “constitui
sujeitos que são parte da própria objetividade” (IDEM, IBIDEM). Em suma,
Marx opera uma inversão completa do pensamento moderno: “sua
constituição do mundo não é obra de um sujeito, ela é uma gênese da
subjetividade (uma forma de subjetividade histórica determinada) como
parte e contrapartida do mundo social da objetividade” (IDEM, p. 85).
Situando-se
no ponto culminante da filosofia moderna, representado por Hegel, Marx
buscou empreender a crítica da modernidade de forma contundente, ao
mesmo tempo em que procurou desenvolver os elementos da concepção
hegeliana que rompiam com o pensamento moderno em sua máxima expressão,
consubstanciada na síntese kantiana.
Em
contraponto a essa senda científico-filosófica aberta por Marx, nós
poderíamos dizer que a maior parte da produção filosófica dos últimos
150 anos não passa de notas à margem do pensamento kantiano que buscam
retomar e discutir as conclusões de suas três críticas: a crítica da
razão pura, a crítica da razão prática e a crítica do juízo. Com efeito,
o positivismo toma como ponto de partida e se constitui num
desdobramento da conclusão kantiana segundo a qual apenas a matemática e
a física são possíveis como ciência. O vitalismo bergsoniano, assim
como o historicismo de Dilthey, procura negar a conclusão de Kant
segundo a qual não existe intuição intelectual. O existencialismo e a
fenomenologia e, de certo modo, também o positivismo lógico e a
filosofia da linguagem partem da constatação kantiana relativa à
contraposição entre fenômeno e coisa-em-si.
E
concluem pela negação dessa dualidade ao afirmarem a precedência da
existência sobre a essência (existencialismo), a descrição do fenômeno
como via de acesso à essência (fenomenologia) e ao considerarem que nada
existe por trás dos fenômenos (positivismo lógico e filosofia da
linguagem). Aliás, sinal dessa força da matriz kantiana é a denominação
de escolas neokantianas atribuída aos grupos organizados no interior
desses dois últimos movimentos filosóficos.
E,
curiosamente, uma das temáticas que toma corpo nessas correntes e se
insinua também no interior do pensamento atual que, de forma genérica e
um tanto imprecisa, tem sido chamado de pós-moderno, é a do solipsismo.
Presente em Kant, mais explorado por Schopenhauer e abordado por Sartre,
tal tema ocupa um lugar importante no positivismo lógico, especialmente
em Carnap e Wittgenstein. Este dedica ao tema algumas proposições do
Tractatus, em especial aquelas da série 5.6. Esta, a proposição de
número 5.6, tem o seguinte enunciado: “Os limites de minha linguagem
denotam os limites de meu mundo” WITTGENSTEIN, 1968, p. 111). Por sua
vez, a de número 5.62 fará menção explícita ao solipsismo:
Esta observação dá a chave para decidir da questão: até onde o solipsismo é uma verdade.
O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer.
Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem que somente eu compreendo) denotam os limites de meu mundo (Ibidem).
O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer.
Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem que somente eu compreendo) denotam os limites de meu mundo (Ibidem).
Sartre, por sua vez, faz a seguinte consideração em sua obra principal, O Ser e o Nada:
Uma
psicologia que pretendesse ser exata e objetiva, como o “behaviorismo”
de Watson, teria, em suma, que adotar o solipsismo como hipótese de
trabalho. Não se tratará de negar a presença, no campo de minha
experiência, de objetos que nós poderíamos nomear “entes psíquicos”, mas
somente de praticar uma espécie de époquê no que se refere à existência
de sistemas de representações organizadas por um sujeito e situadas
fora de minha experiência (SARTRE, 1943, p.284).
Finalmente,
observo que o construtivismo, palavra tão difundida hoje no campo
pedagógico, é de matriz kantiana, conforme explicitamente o reconheceu
Piaget, sua fonte originária.
À
vista das considerações precedentes espero ter deixado claro por que
considerei um equívoco gnosiológico circunscrever Marx nos limites do
pensamento moderno.
No
entanto, sabemos que as concepções que os homens elaboram não têm
apenas um caráter gnosiológico, isto é, relativo ao conhecimento da
realidade, mas também ideológico, isto é, relativo aos interesses e
necessidades humanas. Em suma, o conhecimento nunca é neutro, isto é,
desinteressado e imparcial. Os homens são impelidos a conhecer em função
da busca dos meios de atender às suas necessidades, de satisfazer às
suas carências. Se o aspecto gnosiológico, centrado no conhecimento,
tende para a objetividade, o aspecto ideológico, centrado na expressão
dos interesses, tende para a subjetividade. Mas esses dois aspectos não
se confundem, não se excluem mutuamente e também não se negam
reciprocamente. Ou seja: não se trata de considerar que os interesses
impedem o conhecimento objetivo nem que este exclui os interesses. Os
interesses impelem os conhecimentos e, ao mesmo tempo, os circunscrevem
dentro de determinados limites. É nesse terreno que se desencadeiam os
embates e as lutas do campo intelectual onde equívocos gnosiológicos
podem se manifestar como acertos ideológicos. Assim, embora, como
mostrei, a concepção marxiana não possa ser considerada como inserida na
tradição da modernidade, sua inserção nesse âmbito por parte daqueles
que se situam no horizonte da ordem social instaurada pelo capitalismo
corresponde à tentativa de mostrar que a concepção que formula as
condições de ultrapassagem desse horizonte se encontra aquém e não além
da forma social atualmente dominante.
Nesses
termos, trata-se então de um acerto ideológico, pois expressa
corretamente os interesses e necessidades dos que enxergam a organização
social atual como ainda em expansão e, portanto, capaz de resolver os
problemas que a humanidade vem enfrentando.
Mas,
se a concepção elaborada por Marx partiu do ponto mais avançado
atingido pela modernidade expresso pela filosofia de Hegel, efetuou sua
crítica e inverteu os termos do problema posto pelo pensamento moderno
desautorizando o idealismo, então não se trata de uma concepção inserida
nos limites do pensamento moderno. Não é, pois, uma concepção
ultrapassada, mas se insere plenamente no debate contemporâneo. E, pela
crítica radical ao idealismo próprio do pensamento moderno, instaura um
novo realismo que, obviamente, não pode ser interpretado como uma volta à
metafísica da objetividade anterior à modernidade. Ingressamos, agora,
num novo entendimento da objetividade que se beneficiou da incorporação
de todos os elementos críticos desenvolvidos no seio da filosofia
moderna.
Conclusão: para uma pedagogia concreta
Ao
discutir as bases da concepção dialética de educação que, a partir de
1984, passei a denominar de “pedagogia histórico-crítica”, afirmei que o
movimento que vai do empírico (“o todo figurado na intuição”) ao
concreto (“uma rica totalidade de determinações e de relações
numerosas”) pela mediação do abstrato (a análise), constitui uma
orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos
conhecimentos (o método científico) como para o processo de ensino (o
método pedagógico). É a partir daí que podemos chegar a uma pedagogia
concreta como via de superação tanto da pedagogia tradicional como da
pedagogia moderna.
Uma
pedagogia concreta é aquela que considera os educandos como indivíduos
concretos, isto é, como sínteses de relações sociais. Assim, enquanto a
pedagogia tradicional considera os educandos como indivíduos abstratos,
isto é, como expressões particulares da essência universal que
caracterizaria a realidade humana, a pedagogia moderna considera os
educandos como indivíduos empíricos, isto é, como sujeitos singulares
que se distinguem uns dos outros pela sua originalidade, criatividade e
autonomia, constituindo-se no centro do processo educativo. Por esse
caminho a pedagogia nova elide a história, naturalizando as relações
sociais, como se os educandos pudessem se desenvolver simplesmente a
partir de suas disposições internas, de suas capacidades naturais,
inscritas em seu código genético.
Diferentemente,
a pedagogia histórico-crítica considera que os educandos, enquanto
indivíduos concretos, se manifestam como unidade da diversidade, “uma
rica totalidade de determinações e de relações numerosas”, síntese de
relações sociais. Portanto, o que é do interesse deste aluno concreto
diz respeito às condições em que se encontra e que ele não escolheu, do
mesmo modo que a geração atual não escolhe os meios e as relações de
produção que herda das gerações anteriores. Sua criatividade vai se
expressar na forma como assimila as relações herdadas e as transforma.
Nessa mesma medida os educandos, enquanto seres concretos, também
sintetizam relações sociais que eles não escolheram. Isto anula a idéia
de que o aluno pode fazer tudo pela sua própria escolha. Essa idéia não
corresponde à realidade humana.
Daí,
a grande importância de distinguir, na compreensão dos interesses dos
alunos, entre o aluno empírico e o aluno concreto firmando-se o
princípio de que o atendimento aos interesses dos alunos deve
corresponder sempre aos interesses do aluno concreto. O aluno empírico
pode querer determinadas coisas, pode ter interesses que não
necessariamente correspondem aos seus interesses concretos. É neste
âmbito que se situa o problema do conhecimento sistematizado, que é
produzido historicamente e, de certa forma, integra o conjunto dos meios
de produção. Esse conhecimento sistematizado pode não ser do interesse
do aluno empírico, ou seja, o aluno, em termos imediatos, pode não ter
interesse no domínio desse conhecimento; mas ele corresponde diretamente
aos interesses do aluno concreto, pois enquanto síntese das relações
sociais, o aluno está situado numa sociedade que põe a exigência do
domínio deste tipo de conhecimento. E é, sem dúvida, tarefa precípua da
escola viabilizar o acesso a este tipo de saber.
Eis
como a pedagogia histórico-crítica, trilhando as sendas abertas por
Marx, situa-se além e não aquém da pedagogia moderna, habilitando-se a
enfrentar os desafios postos à educação pela sociedade atual,
ultrapassando o horizonte do capitalismo e da sua forma social
correspondente, a sociedade burguesa. Por isso, os que se situam nos
limites desse horizonte incorrerão, compreensivelmente, no equívoco
gnosiológico de considerar a pedagogia inspirada no marxismo como uma
concepção ultrapassada, circunscrita à problemática do século XIX. De
fato, os interesses vinculados à ordem social hoje dominante, de cunho
capitalista, não permitem outra interpretação, razão pela qual o
mencionado equívoco gnosiológico se expressa como um acerto ideológico.
Mas, para a grande maioria da população, cujos interesses só poderão ser
contemplados para além dos limites da sociedade capitalista, não há
entrave para a compreensão do movimento histórico que, como se evidencia
nas pesquisas levadas a efeito por Marx, coloca a exigência de
superação da ordem burguesa pela construção de uma sociedade em que
estejam abolidas as relações de dominação entre os homens.
*Dermeval
Saviani é Professor Emérito da UNICAMP, Coordenador-Geral do Grupo
Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no
Brasil” (HISTEDBR) e Pesquisador do CNPq.
Referências:
BALIBAR, Étienne, A filosofia de Marx. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia de la história. Barcelona, Zeus, 1970.
LOMBARDI, José Claudinei e SAVIANI, Dermeval (Orgs.), Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas, Autores Associados, 2005.
MARX, Karl, Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa, Estampa, 1973.
SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant. Paris, Gallimard, 1943.
WITTGENSTEIN, Ludwig, Tractatus logico-philosophicus. São Paulo, Nacional/USP, 1968.
EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 44, 45
BALIBAR, Étienne, A filosofia de Marx. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia de la história. Barcelona, Zeus, 1970.
LOMBARDI, José Claudinei e SAVIANI, Dermeval (Orgs.), Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas, Autores Associados, 2005.
MARX, Karl, Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa, Estampa, 1973.
SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant. Paris, Gallimard, 1943.
WITTGENSTEIN, Ludwig, Tractatus logico-philosophicus. São Paulo, Nacional/USP, 1968.
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