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A verdade sobre a participação de Cuba no programa Mais Médico

Asaída dos cubanos do programa Mais Médico no Brasil, em resposta às reiteradas ameaças e provocações do presidente eleito Jair Bolsonaro, deixa desassistidos centenas de municípios e coloca em risco a saúde de milhões de brasileiras e brasileiras. Os motivos do cancelamento da participação cubana, falseados pelo governo e parte da mídia, são analisados nesta reportagem de Leonardo Segura Moraes (publicada originalmente no portal Desacato sob o título De Mais Médico a mais ideologia: as falácias de um presidente eleito) que reproduzimos abaixo.
Na última quarta-feira, 14/11, o Ministério de Saúde Pública de Cuba decidiu não continuar participando do Programa Mais Médicos, uma parceria firmada pelo Brasil desde 2013 por meio da Lei 12.871, de 2013. Ao longo desses 5 anos, foram pelo menos 60 milhões de pessoas atendidas em mais de 3600 municípios do país, num programa que em seu auge teve milhares de profissionais estrangeiros da saúde, principalmente cubanos, e mais de 8 mil brasileiros.
Entre os motivos para o cancelamento de sua participação, o governo cubano elencou que:
“O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, fazendo referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, declarou e reiterou que modificará os termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-Americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba, ao pôr em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e como única via a contratação individual[i].
Isto é, para Bolsonaro a competência dos médicos seria suspeita. Pois bem, vamos aos fatos. Em primeiro lugar, a respeito da qualificação dos médicos e da medicina cubana. O governo cubano possui acordos de cooperação com diversas organizações multilaterais, tais como a Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO, sigla em inglês), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, sigla em inglês) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, sigla em inglês) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, sigla em inglês). Todas são agências das Nações Unidas especializadas em questões de saúde, nutrição e desenvolvimento humano.
O internacionalismo médico cubano atua enviando profissionais da área da saúde mundialmente reconhecidos desde os anos 1960 como forma de política externa e diplomática. Notadamente em países afetados por conflitos ou desastres naturais, tais como Chile, após terremoto em 1960, Guiné-Bissau, entre 1966 e 1974, no Iraque, em 1991, Nicarágua, em 1998, Botswana, em 2005, entre muitos outros países mundo afora. Estudantes de mais de 100 países diferentes – inclusive Estados Unidos – vão a Cuba estudar na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM), em Havana[ii].
Além disso, de acordo com dados extraídos do Banco Mundial[iii] e da Organização Mundial da Saúde[iv], Cuba apresenta índices sanitários como taxa de mortalidade infantil e expectativa de vida melhores do que os do Brasil e semelhantes – até mesmo superiores – aos países mais ricos[v]. Isso em grande parte devido ao foco na atenção básica e preventiva. Fatos que atestam a qualidade do sistema de saúde cubano e da formação de seus profissionais. Afinal, antes de auxiliarem em outros países, eles se formam e trabalham no sistema público de saúde da ilha caribenha, cujo sucesso se deve em grande parte ao foco na atenção básica, preventiva e de baixo custo. O prefeito de Chapada-RS percebeu isso ao convidar o médico cubano Richel Colazzo para assumir a secretaria municipal de saúde e assim continuar exercendo suas atividades na cidade após o anúncio oficial de saída por parte do governo de Cuba[vi].
Para se ter uma ideia do impacto do Programa Mais Médicos, entre 2012 e 2015, o aumento no número de médicos no país após sua implementação foi de 12,7%. Sem o programa, o crescimento teria sido de cerca de 3% nesse mesmo período. Os médicos cubanos foram essenciais nesse elevado crescimento, como mostra o relatório de 2017 do Programa Mais Médicos. Entre 2013 e 2017, das 18.240 vagas em mais de 4 mil municípios e distritos sanitários indígenas brasileiros, 11.429 foram ocupadas por médicos cubanos, 62% do total[vii].
No Brasil, em 2012, isto é, antes Programa Mais Médicos com a participação cubana, o número de médicos por mil habitantes era 1,8 em termos nacionais, bem abaixo de países vizinhos como Argentina (3,9) e Uruguai (3,7), ou europeus como Espanha (3,5), Portugal (3,8) e Reino Unido (2,7). Observando por estados da federação, 22 estados estavam abaixo da média nacional na distribuição de médicos em 2011. Vale também notar que as pesquisas de satisfação dos usuários do Programa Mais Médicos indicam grande aceitação por parte da população.
Outra das investidas que opositores ao Programa Mais Médicos têm diz respeito às relações de trabalho a estão envolvidos os médicos cubanos. Há inclusive quem chame de “escravidão” o sistema de contratação desses profissionais da saúde, o que por sua vez apenas revela a ignorância seletiva a respeito do assunto. Primeiro porque os médicos cooperados oriundos de Cuba recebem bolsas nas seguintes modalidades: 1) bolsa-formação; 2) bolsa-supervisão; e 3) bolsa-tutoria[viii]. Todas elas pagas por meio da intermediação dos respectivos ministérios brasileiro e cubano da saúde e da educação.
Além disso, os profissionais da saúde partícipes estrangeiros do programa possuem moradia e alimentação financiadas pelas prefeituras onde trabalham, sendo que os contratos firmados são administrados pela Organização Pan-Americana da Saúde. A cifra paga pelo Brasil por médico cubano cooperado foi reajustado em 2017 e era de R$ 11,8 mil. Desse valor, Cuba repassava R$ 3 mil para cada médico no Brasil, que não precisava arcar com custos referentes a moradia e alimentação. Aliás, é bom lembrarmos que pelo menos 30% do orçamento familiar é gasto em despesas com habitação[ix], algo pelo qual nenhum médico cubano trabalhando no Brasil como intercambista cooperado do Mais Médicos teve que se preocupar.
Mas por que o repasse da bolsa não era integral? Como foi dito anteriormente, o internacionalismo médico cubano é parte da política externa e diplomática do país. Em termos econômicos, a experiência e conhecimento de saúde de Cuba se constituem como um de seus principais ativos[x], gerando para a ilha uma importante fonte de recursos especialmente em virtude da continuidade do embargo econômico dos EUA sobre o país.
Essa riqueza não é apropriada por uma pequena fração da população cubana, haja visto que os profissionais cubanos da saúde trabalhando em outros países tiveram, em 2014, aumentos salariais entre 100 e 200% por parte do governo caribenho[xi]. Isso não é escravidão. Isso é justiça social. Algo muito diferente do que comprovadamente praticam apoiadores diretos de Jair Bolsonaro ao serem cúmplices de empresas flagradas com trabalho escravo no Brasil[xii].
Essas informações acima revelam que as últimas demonstrações do presidente brasileiro recentemente eleito não condizem com a realidade dos fatos. Sustentam-se como pós-verdade, ignorando fatos objetivos em detrimento de suas particulares crenças ideológicas e interesses privatistas. Porém, quem vai pagar a conta dessa postura pouco condizente com a realidade objetiva será a população hoje atendida pelo Programa Mais Médicos. Não por acaso a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) ressaltou preocupação com a saída dos mais de 8 mil profissionais cubanos que hoje atuam em cidades com menos de 20 mil habitantes, cuja ausência colocará em risco cerca de 28 milhões de pessoas[xiii].
[v]https://data.worldbank.org/indicator/SH.DYN.MORT?locations=BR&fbclid=IwAR3j5VqMpl7ld86OW3FG9N5bepuc082hcDHxPHvwbgi2tYcrtYbuenSuJNg

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